Celebrando a 25.ª edição em Porto Covo e Sines, o FESTIVAL MÚSICAS DO MUNDO (FMM) ofereceu a diversidade esperada (quando o mote é um cartaz "com espírito de aventura") e reforçou a costela interventiva. O concerto de Sami Galbi foi dos exemplos mais vibrantes disso mesmo, mas Miss Universo, Luca Argel, Fidju Kitxora, Lena d'Água, Mokoomba ou Ali também deixaram grandes memórias em espectáculos gratuitos, entre 18 e 26 de Julho.

Mário Pires/FMM
"Obrigado por o terem dito de forma clara. Isso é tão importante", agradeceu SAMI GALBI depois de o público que o viu na madrugada de 25 para 26 de Julho, no Palco Galp (ao lado da praia Vasco da Gama, em Sines), ter gritado várias vezes por uma Palestina livre. Acompanhado de uma bandeira palestiniana em palco durante toda a actuação, o cantor, compositor, produtor e multi-instrumentista suíço de ascendência marroquina apresentou um tema inédito inspirado "na liberdade, na independência e no colonialismo" com um fulgor emocional e rítmico que os espectadores fizeram questão de retribuir.
Visivelmente comovido perante uma recepção sempre entusiasta, o artista que se estreou este ano com o álbum "Ylh Bye Bye" foi das grandes surpresas desta edição do FMM e mostrou que o palco é a melhor porta de entrada para a sua música livre e serpenteante. Tão livre como a sua postura ao vivo num concerto em que cantou, tocou guitarra e teclados e dançou (incluindo para trás, com um particular movimento de ombros).

Mário Pires/FMM
Embora a mistura de tradição e modernidade seja uma via cada vez mais seguida, sobretudo num festival como este, soa especialmente fresca num modelo de canção pop dançável com heranças africanas (começando pelo idioma, darija, ou árabe marroquino) e moldura entre a house ou o hip-hop.
"Gostam de música raï?", questionou SAMI GALBI, aludindo ao género com nascido na Argélia (e também com impacto em Marrocos) que alia preocupações sociais a ritmos frenéticos de sintetizadores. E não faltou frenesim ao longo de um espectáculo com a colaboração preciosa de um percussionista (Yann Hunziker) e de uma teclista (INES). A segunda colaborou ainda na composição de "Patience", tema dedicado à amizade, lembrou e agradeceu o cantor. Já "Transit", outro momento alto, partiu da multiplicidade identitária, assinalou o suíço de origens africanas, acrescentando ainda a experiência da migração às questões que aborda nas suas canções.

Mário Pires/FMM
Foi, aliás, entre fronteiras que SAMI GALBI formou a sua personalidade musical, disse também, sublinhando a influência dos discos de vinil que descobriu em casa da avó, em Casablanca, e que trouxe para a Europa. Outra viagem levou-o, há dez anos, ao FMM, mas enquanto espectador, partilhou. E a julgar pelo ambiente que viveu e promoveu neste regresso, parece ter encontrado em Sines um novo porto seguro...
Se a crítica ao genocídio que dura há quase dois anos em Gaza deixou um dos episódios mais intensos da actuação de Sami Galbi, teve um peso ainda maior no concerto dos MISS UNIVERSO. A dupla de Afonso Branco e André Ivo actuou no Castelo de Sines no último dia do FMM, 26 de Julho, noutro espectáculo capaz de levar mais longe a promessa de um primeiro álbum (no caso, "Manifesto do Jovem Moderno", editado no final de 2024).

Mário Pires/FMM
Apresentando-se no formato banda, com mais três músicos (no baixo, bateria e teclados/sintetizadores), o projecto lisboeta viajou entre temperos africanos (curiosamente em "Ser Português", single tão orelhudo e bamboleante como irónico), acessos de rock visceral (no remate de "O Rafeiro") e momentos mais intimistas.
Ao fundo do palco, o ecrã contrastava com o cenário aparentemente idílico de um entardecer veraneante: listou, ao longo de todo o concerto, os nomes dos milhares de crianças mortas na Palestina desde Outubro de 2023 até Setembro de 2024, explicaria Afonso já perto do final. Mas a oposição vincada a um cenário inaceitável não se ficou por aí: embora em disco a dupla já se mostrasse acutilante, não deixou de ser inesperado ver e ouvir o vocalista entoar, sozinho em palco, à guitarra, um tema-manifesto inédito, insurgindo-se contra o pior da realidade de 2025 dentro e fora de portas. O apontar de dedo começou no estado da política nacional e acabou na hipocrisia do Ocidente face à tragédia palestiniana, moldado pelo sentido de urgência palpável de um jovem trovador insubmisso. Atenção que esta Miss impõe respeito e não se presta a palavras vagas...

Mário Pires/FMM
"Não esquecemos quem está morrendo, não esquecemos quem está matando e não esquecemos quem está calado enquanto o genocídio acontece." A citação não teria destoado no espectáculo dos Miss Universo, mas fez parte da passagem de LUCA ARGEL pelo castelo um dia antes, 25 de Julho. Outro belo concerto de entrada livre no qual se viam netos, pais e avós, portugueses e estrangeiros, não dispensou o activismo a favor do abraço à diferença. Ou não fosse o luso-brasileiro conhecido por um singular "samba de guerrilha" cujas armas são quase sempre a eloquência, o humor e a doçura.
Afável sem deixar de ser contundente, fez mira a cidades engolidas pelo turismo em "Gentrificasamba" ("A cidade vai virar só hotel para turista") e reforçou a cumplicidade com o público entre relatos da sua experiência de imigrante em Portugal ou da ansiedade criativa durante a pandemia. Houve samba, mas também rock ou funk, oferecidos por uma banda coesa e versátil. Só faltou A garota não na melancolia de "Países que ninguém invade". Ficámos, no entanto, com palavras como estas em tempos de desesperança: "O amor dissolve toda a zanga/ só não sabe quem não tenta".

Mário Pires/FMM
Depois de, na edição do ano passado, a palestiniana Haya Zaatry ter lamentado a destruição do seu povo, destacaram-se mais vozes a darem-lhe eco em 2025. As dos espanhóis Zeltia Irevire, do sueco Mats Gustafsson e do finlandês Kimmo Pohjonen, dos brasileiros Nação Zumbi ou dos portugueses Bateu Matou também se afirmaram contrárias ao governo israelita. Denunciando outras violências, Capicua manteve a força motriz feminista com as canções de "Um Gelado no Fim do Mundo", o seu álbum mais recente.
Já o espectáculo de FIDJU KITXORA ("filho que chora", em kriolu) apontou o racismo estrutural e a violência policial na apresentação de "Racodja", um dos discos nacionais do ano passado a descobrir ou repescar. Ganhando contornos mais musculados ao vivo, o projecto cuja identidade dos membros continua um mistério levou a palco um braço de ferro entre tradição cabo-verdiana e techno pujante, fusão apropriada para a madrugada de de 26 para 27 de Julho no Palco Galp. Entre um início logo efusivo, complementado pelo fogo de artifício que marcou o último dia do festival, e um desfecho que o superou, graças à tão repetitiva como irresistível "Tonito cre bai", foi uma experiência audiovisual envolvente, a cruzar música e dança, performance e contemplação, excertos de noticiários e memória histórica.

Nuno Pinto Fernandes/FMM
Falando em história, a da pop nacional não seria a mesma sem LENA D'ÁGUA, que se estreou finalmente no FMM este ano. Uma oportunidade para ouvir a fase revigorante de "Desalmadamente" (2019) e "Tropical Glaciar" (2024), exemplos de uma muito bem-vinda alquimia com Pedro da Silva Martins, compositor de letrista que a cantora de "Sempre que o Amor Me Quiser" (tema que abriu o espectáculo em comoção geral) não se cansa de elogiar.
A actuação na tarde do dia 23 foi o regresso a uma cidade onde a cantora confessou ter sido muito feliz na juventude, quando aí passava verões "descalça no melhor parque de campismo do mundo" nos anos 70. Mas não se esquivou a deixar-lhe uma crítica quanto ao transporte de animais vivos para Israel a partir do seu porto. "Talvez fosse bom explicar às crianças o que é a chicha que têm no prato", comentou antes da deliciosa e fresquinha "Carne Vegan".

Mário Pires/FMM
De um passado distante ouviu-se "Demagogia", tema que, como comentava um espectador, "continua muito actual". Igualmente assertiva, "Pop Toma" tem sabor a clássico instantâneo, comprovado pela reacção de um público que os últimos discos souberam renovar. Como não, quando há pérolas de felicidade pura na linha de "Hipocampo", outro trunfo de um concerto no qual o sorriso estampado foi a expressão mais visível num castelo repleto?
Se para a maioria Lena d'Água terá sido mais um reencontro do que uma descoberta, os MOKOOMBA foram das revelações mais empolgantes. O colectivo é daquelas máquinas de ritmo muitíssimo bem oleadas que não costuma faltar no FMM (como os Moticoma em 2024, os Al-Qasar em 2023, os KUTU em 2022...), em especial nas madrugadas junto à praia. Foi assim na de dia 24 para 25, com o sexteto do Zimbabué a mergulhar num caldeirão de zamrock (psicadelismo originário da Zâmbia nos anos 70) com pontes para o afrobeat, o funk ou o jazz. Da voz possante de Mathias Muzaza à muralha instrumental, a ordem foi dançar, começando pelos músicos, que pareciam disputar entre eles o título de bailarino da noite. Enquanto o protagonismo foi alternando, todos brilharam, com destaque para um percussionista e um teclista particularmente endiabrados e incansáveis.

Nuno Pinto Fernandes/FMM
Boa impressão deixaram ainda os indonésios ALI, no mesmo espaço, na noite anterior, quase sempre assentes em novelos instrumentais entre o dançável e o hipnótico, também a partilharem o amor pelo funk e pelo psicadelismo, mas a piscarem ocasionalmente o olho ao disco e à soul. Quem quiser perder-se na banda sonora imaginária de um policial dos anos 70 (com doses cavalares de guitarra wah-wah), é seguir por aqui.
Em modo mais electrónico, pelas madrugadas dentro (às vezes até ao sol nascer) ouviram-se também os híbridos festivos dos Zar Elektric (euforia tribal de França a Marrocos), a pirotecnia de Article15 (das ruas do Congo à escola dos Prodigy ou Daft Punk) ou o transe robótico dos Taiga (entre a Mongólia e a China de ontem e de hoje, com flauta, arco, guitarra e sintetizadores). De balanço tão ou mais imparável, os cabo-verdianos Fidjos Codé Dí Dona serviram funaná rejuvenescido até altas horas.
Para o ano há mais? Há, de 17 a 25 de Julho. Mantendo este caminho firme e livre de associar a música "com espírito de aventura" à pluralidade de géneros e origens (39 concertos de artistas de 24 países em 2025) e à voz especialmente interventiva desta edição, nos tempos incertos que correm? Esperemos que sim e a organização está confiante.