Festejemos a nova selecção italiana
16-04-2025 | 23:43 | Gonçalo Sá
Quase a despedir-se de Lisboa e prestes a chegar a Aveiro, Funchal ou Braga, a 18.ª edição da FESTA DO CINEMA ITALIANO tem, entre muitos outros destaques, cinco filmes em competição. "DICIANNOVE" e "FAMILIA" são dos mais estimulantes dessa mostra de novos realizadores.
"DICIANNOVE", de Giovanni Tortorici: Primeira obra de um realizador que foi assistente de realização de Luca Guadagnino na brilhante série "We Are Who We Are" (HBO/Sky Atlantic), este drama inventivo e idiossincrático conta com o cineasta de "Chama-me Pelo Teu Nome" e "Challengers" entre os produtores e também se debruça nas questões sempre férteis da entrada na idade adulta.
Parcialmente autobiográfico, deixa um retrato da solidão, acompanhada de alguma repressão e alienação, de um estudante de literatura numa jornada emocional e geográfica (entre Palermo, terra natal de Tortorici, Londres, Siena e Turim). Mas apesar de reconhecer as dificuldades do crescimento, este retrato aplaudido no Festival de Veneza (e nomeado em duas categorias) não se leva demasiado a sério, condimentando as viagens com um olhar escarninho e irónico.
Boa parte do sentido de humor deriva logo de pormenores deliciosos da montagem, com o recurso a zooms e cortes abruptos a sublinhar o saudável experimentalismo formal de um filme que dificilmente se confunde com outros testemunhos do adeus à adolescência. Mesmo que algumas particularidades nem sempre o favoreçam: "DICIANNOVE" é por vezes demasiado episódico, com uma colagem de vinhetas de inspiração variável e uma certa auto-indulgência, à medida de um protagonista insolente e pedante.
Manfredi Marini, numa estreia muito promissora na representação, aguenta bem o olhar obsessivo da câmara (que não prescinde dele em nenhuma cena), com uma presença que chega a lembrar o Xavier Dolan actor ao longo de um filme que também parece ter ecos do Xavir Dolan realizador - e que por isso se arrisca a despertar reacções tão extremadas como muitos filmes desse "enfant terrible" canadiano. Mas será difícil não reconhecer aqui talento...
3/5
"FAMILIA", de Francesco Costabile: O realizador de "Una femmina" (que passou pela Festa do Cinema Italiano há três anos) afirma-se como um nome a seguir nesta adaptação de "Non sarà sempre così" (2017), livro autobiográfico de Luigi Celeste.
Mergulho intenso nos ciclos de violência que questiona a possibilidade de redenção, é a história de uma família na qual o realismo social aceita contaminações do thriller e faz tangentes ao terror, códigos que marcam um quotidiano de abuso físico e psicológico por parte da figura paterna.
Algures entre o recente "Brincar com o Fogo", drama de Delphine e Muriel Coulin no qual a personagem de Vincent Lindon se debate com um filho seduzido pelo fascismo, e o mais distante "Custódia Partilhada", de Xavier Legrand, também atravessado por um caso de violência doméstica levado ao extremo, "FAMILIA" evita demonizações fáceis enquanto demora o seu tempo a revelar o foco narrativo.
O protagonista acaba por ser um dos filhos, interpretado na idade adulta por Francesco Gheghi (Prémio de Melhor Actor no Festival de Veneza), tremendo na pele de uma figura ambígua e com um conflito interior que o filme nunca simplifica. Mas é pena que as personagens da sua mãe e irmão acabem menos exploradas do que o arranque sugeria, com o argumento a privilegiar o pai, a cargo do veterano Francesco Di Leva (outra interpretação fortíssima entre um elenco todo merecedor de aplausos).
O desenlace também não estará à altura de outros momentos, embora a carga visceral e urgente desses seja tão bem captada por Costabile que "FAMILIA" nunca deixa de ser uma experiência tão memorável como recomendável - e das melhores descobertas desta edição da Festa, a pedir estreia em sala.
3,5/5